26/12/07

aparte 31

Toalha estendida na areia
cabeça nos braços apoiada
nem o canto de uma sereia
nos afasta dessa almofada
ao longe murmúrio de vozes
o som de ondas quebradas
o sol que nos aquece
o nada que apetece
rabisco na areia molhada
salpico de água salgada
nem um livro para ler
nada que apeteça fazer
só mesmo o calor sentir
e o horizonte olhar
da vida me despir
e contigo sonhar

22/09/07

aparte 30

Momentos

o beijo inesperado
o braço que nos rodeia
a carícia de um dedo
quando pelo rosto passeia
o sorriso que se oferece
quando a vida apetece
a mão que a nossa aperta
o olhar demorado
barco levado por sereia
ternura feita de malha
que no frio nos agasalha
corpos de estrelas tecidos
reflexo de campos floridos

29/08/07

aparte 29

Quando alguém publica o que escreve
sujeita-se ao escrutínio público
sujeita-se a que interpretem o que nem se quis escrever
mas pior que isso
sujeita-se a que saibam tudo o que se pretendeu dizer...

Não é poesia o que escrevo
É, por vezes, pôr fim à asfixia
Que nasce do desespero

Felicidade ou dor
Só se escreve por amor

aparte 28

O sentido que menos nos engana é o sexto. Nós é que, por vezes, teimamos em desconfiar dele e mesmo em negar-lhe a existência.

10/08/07

aparte 27

Queria ser navio
E no oceano, teu corpo, navegar
Queria ser margem
E barco, teu corpo, abrigar
Queria ser raiz
E árvore, teu corpo, alimentar
Queria ser sol
E terra, teu corpo, aquecer
Queria ser fonte
Para água, meu corpo, vires beber.

23/07/07

aparte 26

Contigo vivo esta aventura
de por momentos me perder
sem pensar
no sempre certo amanhecer

quando perto os dias adormecem
na calma de um abraço
quando longe um sorriso imaginamos
num efémero espaço

quando perto ao amor nos abandonamos
quando longe o perto desejamos

sonhos
azuis
de mar e céu

A Noite Passada

A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
ri-me de ti "então porque não voas?"
e então tu olhaste
depois sorriste
abriste a janela e voaste

A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissemos
aqui vivemos muitos anos

A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá",
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então olhaste
depois sorriste
disseste "ainda bem que voltaste"

FMI

Vou, vou-vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial, trata-se de um texto que foi escrito, assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não é muito actual. Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam ser já não muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.Chama-se FMI.Quer dizer: Fundo Monetário Internacional.Não sei porque é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reúnem, como as pessoas, em torno de uma mesa para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos...É o internacionalismo monetário!

FMI

Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o mortimor do meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí a dentro, analisar, e então
Do meu 'attachi-case' sai a solução!

FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico para si
FMI Não há força que retorça o FMI

Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Não ando aqui a brincar, não há tempo a perder
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução!

FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico 'hara-quiri'
FMI Panegírico, pro-lírico daqui

Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si e palavras para dó
A contas com o nada que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais, célulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Num encontrão imediato do 3º grau!

FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI ...

Entretém-te filho, entretém-te, não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalt'e-quer, messe gigantesca, vem-te vindo, vi-me na cozinha, vi-me na casa-de-banho, vi-me no Politeama, vi-me no Águia D'ouro, vi-me em toda a parte, vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão, olha os pombinhos pneumáticos que te orgulham por esses cartazes fora, olha a Música no Coração da Indira Gandi, olha o Muchê Dyane que te traz debaixo d'olho, o respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho? Nós somos um povo de respeitinho muito lindo, saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho? Consolida filho, consolida, enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde. Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo, o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos, como o astro, não é filho? O cabrão do astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é? Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar, para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta destabilização filha-da-puta, não é filho? Pois claro! Estás aí a olhar para mim, estás a ver-me dar 33 voltinhas por minuto, pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transação e estás a pensar lá com os teus botões: Este tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é? Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde de nascente? A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote! Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho? Onde está o teu Extremo Oriente, filho? Ah-ni-qui-bé-bé, ah-ni-qui-bó-bó, tu és 'Sepuldra' tu és Adamastor, pois claro, tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida! Entretém-te filho, entretém-te! Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho, trabalhinho, porreirinho da Silva, e salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala e ritmo de pop-xula, não é filho?A one, a two, a one two three

FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...

Come on you son of a bitch! Come on baby a ver se me comes! Come on Luís Vaz, 'amanda'-lhe com os decassílabos que os senhores já vão ver o que é meterem-se com uma nação de poetas! E zás, enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares, zás, enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal, zás, enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros, zás, enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro, zás, enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer e acabamos todos numa sardinhada ao integralismo Lusitano, a estender o braço, meio Rolão Preto, meio Steve McQueen, ok boss, tudo ok, estamos numa porreira meu, um tripe fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade, né filho? Pois, o irreversível, pois claro, o irreversívelzinho, pluralismo a dar com um pau, nada será como dantes, agora todos se chateiam de outra maneira, né filho? Ora que porra, deixa lá correr uma fila ao menos, malta pá, é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é? Preocupações, crises políticas pá? A culpa é dos partidos pá! Esta merda dos partidos é que divide a malta pá, pois pá, é só paleio pá, o pessoal na quer é trabalhar pá! Razão tem o Jaime Neves pá! (Olha deixaste cair as chaves do carro!) Pois pá! (Que é essa orelha de preto que tens no porta-chaves?) É pá, deixa-te disso, não destabilizes pá! Eh, faz favor, mais uma bica e um pastel de nata. Uma porra pá, um autentico desastre o 25 de Abril, esta confusão pá, a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa... Tá bem, essa merda da pide pá, Tarrafais e o carágo, mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah? Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, ah? Quem é que não se calava, quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, ah? Meia dúzia de líricos, pá, meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro, pá, isto é tudo a mesma carneirada! Oh sr. guarda venha cá, á, venha ver o que isto é, é, o barulho que vai aqui, i, o neto a bater na avó, ó, deu-lhe um pontapé no cu, né filho? Tu vais conversando, conversando, que ao menos agora pode-se falar, ou já não se pode? Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, ah? Estás desiludido com as promessas de Abril, né? As conquistas de Abril! Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho? E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia, não é nada comigo, não é nada comigo, né? E os da frente que se lixem... E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada, precisas de paz de consciência, não andas aqui a brincar, né filho? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém e atiras as culpas para os da frente, para os do 25 de Abril, para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para os do 25 de Novembro, para os do... que dia é hoje, ah?

FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...

Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho? Todos temos culpas no cartório, foi isso que te ensinaram, não é verdade? Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande, tenho dito. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é isto verdade? Quer isto dizer, há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular! Somos todos muita bons no fundo, né? Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né? Somos todos, ou anti-comunistas ou anti-faxistas, estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá, as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa, cá o pintas azeite mexilhão, eu quero lá saber deste paleio vou mas é ao futebol, pronto, viva o Porto, viva o Benfica, Lourosa, Lourosa, Marraças, Marraças, fora o arbitro, gatuno, bora tudo p'ro caralho, razão tinha o Tonico de Bastos para se entreter, né filho? Entretém-te filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores, entretém-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais, entretém-te filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho, entretém-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar, entretém-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes, entretém-te filho e vai para a cama descansado que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada, milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos com computadores, redes de policia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá! Podes estar descansado que o Teng Hsiao-Ping está a tratar de ti com o Jimmy Carter, o Brezhnev está a tratar de ti com o João Paulo II, tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas. A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias, ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou! Hão te convencer de que a culpa é tua e tu sem culpa nenhuma, tens tu a ver, tens tu a ver com isso, não é filho? Cada um que se vá safando como puder, é mesmo assim, não é? Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer, votas à esquerda moderada nas sindicais, votas no centro moderado nas deputais, e votas na direita moderada nas presidenciais! Que mais querem eles, que lhe ofereças a Europa no natal?! Era o que faltava! É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes, ora toma, para safado, safado e meio, né filho? Nem para a frente nem para trás e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso, né? Claro! Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega. Entretém-te meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti, se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão, descansa que eles tratam disso, se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo! Descansa, não penses em mais nada, que até neste país de pelintras se acho normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar! Descontrai baby, come on descontrai, arrefinfa-lhe o Bruce Lee, arrefinfa-lhe a macrobiótica, o biorritmo, o euroscópio, dois ou três ofeneologistas, um gigante da ilha de Páscoa e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas! Piramiza filho, piramiza, antes que os chatos fujam todos para o Egipto, que assim é que tu te fazes um homenzinho e até já pagas multa se não fores ao recenseamento. Pois pá, isto é um país de analfabetos, pá! Dá-lhe no Travolta, dá-lhe no disco-sound, dá-lhe no pop-xula, pop-xula pop-xula, iehh iehh, J. Pimenta forever! Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti, não te chega para o bife? Antes no talho do que na farmácia; não te chega para a farmácia? Antes na farmácia do que no tribunal; não te chega para o tribunal? Antes a multa do que a morte; não te chega para o cangalheiro? Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir, cabrões de vindouros, ah? Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu ah? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá, e eu? José Mário Branco, 37 anos, isto é que é uma porra, anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo, e depois? É só porrada e mal viver é? O menino é mal criado, o menino é 'pequeno burguês', o menino pertence a uma classe sem futuro histórico... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso, mais vale só do que mal acompanhado, vá mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos! Deixem-me em paz porra, deixem-me em paz e sossego, não me emprenhem mais pelos ouvidos caralho, não há paciência, não há paciência, deixem-me em paz caralho, saiam daqui, deixem-me sozinho, só um minuto, vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e policias e generais para o raio que vos parta! Deixem-me sozinho, filhos da puta, deixem só um bocadinho, deixem-me só para sempre, tratem da vossa vida que eu trato da minha, pronto, já chega, sossego porra, silêncio porra, deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só, deixem-me morrer descansado. Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado, eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto, eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa, deixem-me só porra, rua, larguem-me, zórpila o fígado, arreda, 'terneio' Satanás, filhos da puta. Eu quero morrer sozinho ouviram? Eu quero morrer, eu quero que se foda o FMI, eu quero lá saber do FMI, eu quero que o FMI se foda, eu quero lá saber que o FMI me foda a mim, eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se eu tornar a ir para o hospital, pronto, bardamerda o FMI, o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões, o FMI não existe, o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma, o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio, rua, desandem daqui para fora, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe...

Mãe, eu quero ficar sozinho... Mãe, não quero pensar mais... Mãe, eu quero morrer mãe.Eu quero desnascer, ir-me embora, sem ter que me ir embora. Mãe, por favor, tudo menos a casa em vez de mim, outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e de me encontrar fugindo, de quê mãe? Diz, são coisas que se me perguntem? Não pode haver razão para tanto sofrimento. E se inventássemos o mar de volta, e se inventássemos partir, para regressar. Partir e aí nessa viajem ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar, abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar, terra, mar, mãe... Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto, lembrar nota a nota o canto das sereias, lembrar o depois do adeus, e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal, lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição, partir aqui com a ciência toda do passado, partir, aqui, para ficar...

Assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar, gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes, assim mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou: Olá camaradas, somos trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer, aqui está a minha arma para vos servir. Assim mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera se levantam antiquíssimos rumores, as festas e os suores, os bombos de lava-colhos, assim mesmo senti um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o bater inexorável dos corações produtores, os tambores. De quem é o carvalhal? É nosso! Assim te quero cantar, mar antigo a que regresso. Neste cais está arrimado o barco sonho em que voltei. Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grandola Vila Morena. Diz lá, valeu a pena a travessia? Valeu pois.

Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe, no fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco. Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra, o meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez. Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto.

Nota: FMI foi editado originalmente em 1982 no maxi Som 5051106, e reeditado em 1996 em 'Ser Solidário' ( EMI-Valentim de Carvalho). Aconselha-se vivamente a sua audição. Webmaster: franciscojmleitao@hotmail.com (08/2002), in http://fmi.com.sapo.pt/

22/07/07

Estrela do Mar


Um pequenino grão de areia
Que era um pobre sonhador
Olhando o céu viu uma estrela
Imaginou coisas de amor

Passaram anos, muitos anos
Ela no céu e ele no mar
Dizem que nunca o pobrezinho
Pôde com ela encontrar

Se houve ou se não houve
Alguma coisa entre eles dois
Ninguém soube até hoje afirmar
O certo é que depois, muito depois,
Apareceu a Estrela Do Mar

21/07/07

aparte 25

Dizem-me que sabemos que estamos velhos, quando não reconhecemos a música ou os músicos da actualidade. Conclusão: estou velha!

Jogar com as palavras

Grave é uma palavra grave.
Esdrúxula é uma palavra esdrúxula.
Já o que é grave é que aguda é uma palavra grave.


Cem papas na língua é peso demais para a língua.


Quando no oásis não está ninguém diz-se que o oásis está deserto.

Poema Visual


19/07/07

Homem

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão
Pinceladas de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.

aparte 24

Mágoa, o que é?

um ninho destruído
uma criança abandonada
um coração oprimido
uma ave aprisionada

um nó na garganta
de quem canta

uma ribeira que secou
uma floresta ardida
uma flor que murchou
uma ave ferida

uma pétala arrancada
uma árvore caída
uma pedra atirada
uma pomba perdida

uma promessa por cumprir
uma viagem adiada
uma acácia por florir
uma raiz arrancada

uma janela fechada
a solidão que espreita
uma vida ceifada
numa viela estreita

um olhar ausente
uma lágrima escondida
a mão que se desprende
a dor da despedida

morte é mágoa

aparte 23

Passamos pela vida
e vamos também aprendendo
a crueldade das palavras
que o silêncio nos diz

As Palavras

As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

18/07/07

aparte 22

Já olhaste atentamente o sol
quando o dia beija
se estende na areia
e o mar deseja?

Já olhaste atentamente a lua
quando à noite aparece
uma estrela seduz
e o céu se enche de luz?

Já olhaste atentamente o mar
quando ao sol se abandona?

Já olhaste atentamente uma estrela
que pela lua se apaixona?

Olha o sol que beija o mar
Olha a lua que a estrela seduz
Quando de brilho se envaidecem
O amor se insinua
E os corpos aquecem

17/07/07

Instante

O vento passou
beijando a magnólia do jardim
Docemente a beijou...

E vestida de rosa e roxo,
a magnólia sorriu, e ficou.
Docemente sorriu...
O vento passou.
A magnólia floriu.

06/07/07

aparte 21

Hoje o dia começou
Com o teu beijo
E falou de nós
Falou da sede saciada
Da ternura partilhada
Da loucura reinventada
Da cumplicidade
da Lua
Que nos espera…

07/06/07

aparte 20

Há qualquer coisa de maquiavélico quando não se olha a meios para se atingirem fins.
Está a criar-se uma sociedade de monstros, monstros licenciados, monstros mestres, monstros doutores, mas monstros! Sob as ordens de alguns desses monstros, trabalham outros monstrinhos que, mais pequeninos e mesquinhos, aspiram a monstros superiores!
E haverá depois, a monstralhada geral, incapaz de um gesto e que apenas terá tempo para se preocupar com o que tem no bolso para comer no dia seguinte ou ainda a monstralhada mediana que, por já só ter de se preocupar com o que vai comer daí a 10 dias, olhará de cima a monstralhada geral e que perpectuará a existência do ditado “Em terra de cegos…”.
Temos pouco mais de um ano para tentar alterar este tipo de sociedade e não vejo reacção! Vejo um governo com aspirações fascizantes e uma população inteira a baixar a cabeça! Vejo gente, com idade mental para usar fraldas, em cargos superiores, alguns que nem ler ou escrever sabem, sem a mínima capacidade crítica ou sequer um nível cultural mediano – apenas burocratas com telemóvel de última geração e que, por terem net, pensarão ser muito evoluídos! Infelizmente, não evoluímos nada!

25/05/07

Soneto à Maneira de Camões

Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é o meu tormento.

Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que m'o dês - pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.

Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.

Amor é um fogo que arde sem se ver

Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence o vencedor;
É ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o tempo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E, do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

O tempo acaba o ano, o mês e a hora

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora.

O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro,
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grã bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.

24/05/07

Tanto de meu estado me acho incerto

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que, em vivo ardor, tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, Senhora.

23/05/07

aparte 19

No jogo da sedução, não há caçador nem caçado, porque cada um é ambos. Também não há dia de abertura de caça – está aberta todo o ano. Convém, no entanto, ter carta de caçador e licença de uso e porte de arma. Para mais informações sobre como as obter, consulte o “Manual de Vida”, capítulo “Estar Atento”, subcapítulo “Gostar dos Outros”. Para a manutenção de ambas as espécies, não há bibliografia disponível, mas dizem que a preservação de “Saber Ser” tem dado resultados satisfatórios e permite o equilíbrio do ecossistema.

22/05/07

aparte 18

Podemos pintar toda a natureza, fotografar todas as pessoas, captar qualquer momento, registar todos os sons, mas nunca conseguiremos descrever a paisagem que temos na alma.

aparte 17

A vida é um carrocel, onde temos que pagar mesmo as voltas que não quisermos dar.

aparte 16

Na vida, fazem-se duas coisas: dorme-se e está-se acordado.
Se se dorme, é porque há sono; se se está acordado, quando seria lógico estar-se a dormir, é porque:
1 - a lógica deixa de ter validade, deixa de ser lógica;
2 - a sede de viver é superior à lógica.

Cansaço é o tipo que se está borrifando para qualquer lógica que não seja a dele e que, ainda por cima, goza com a vontade própria de cada um.

aparte 15

A amizade é o golo de café da vida - mantém-nos acordados.

aparte 14

Quando alguém que, por mero acaso, vai ao mesmo café que nós, nos cumprimenta sorridentemente e nos esquecemos que no dicionário também existe a palavra cinismo, estamos perante uma ilusão de óptica.
Por falar nisso, sorriso amarelo é aquele que aflora quando nos encontramos frente a frente com quem desejamos ver pelas costas.

21/05/07

Prólogo

(...)
os políticos não são inteiramente galinhas porque cacarejam e não põem ovos;
(...)
os gestores destilam um suor frio que nos constipa;
(...)
os intelectuais são uma chatice com que o Criador não contava
(...)
o sistema é a creche da debilidade mental e a vala comum da inteligência;
(...)
a economia é adquirir-se o vício do fumo porque se comprou um isqueiro; (...)

AS BELAS MENINAS PARDAS

As belas meninas pardas
são belas como as demais.
Iguais por serem meninas,
pardas por serem iguais.

Olham com olhos no chão.
Falam com falas macias.
Não são alegres nem tristes.
São apenas como são
todos os dias.

E as belas meninas pardas,
estudam muito, muitos anos.
Só estudam muito. Mais nada.
Que o resto, traz desenganos...

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

Nos passeios de domingo,
andam sempre bem trajadas.
Direitinhas. Aprumadas.
Não conhecem o sabor que tem uma gargalhada
(Parece mal rir na rua!...)
E nunca viram a lua
debruçada sobre o rio,
às duas da madrugada.

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

E desejam sobretudo, um casamento decente...

O mais, são histórias perdidas...
Pois que importam outras vidas,?...
outras raças?..., outros mundos?...
que importam outras meninas,
falizes ou desgraçadas?!...

As belas meninas pardas,
dão boas mães de família,
e merecem ser estimadas...

(1959 Fevereiro)

(24)

Depois de longas negociações
sua excelência
aceitou a indicação
para o cargo
pondo como única condição
democrática
ser eleito

18/05/07

aparte 13

Dez horas
Praia aberta

Na torre
O relógio marca o tempo
Do hino se enche o ar
São toalhas que se estendem
Mãe, posso ir brincar?

Maré baixa
Águas límpidas
Mar calmo que oferece
Na areia as brincadeiras
Que a minha infância conhece:
castelos a construir,
“piscina” improvisada
o “prego” metia adultos
como o “ringue” que voava.

Chegada a hora do banho
De gente o mar fervilha
E, ao colo, em aflição,
um ritual a cumprir
no meio da agitação
é hora dos olhos fechar
que esta onda é ideal
a cabeça a mergulhar
e, num segundo, só se ouve
o próprio silêncio do mar!

Olh’ó Rajá!
Olh’à bolacha americana!
Olh’ó barquilho!
A roda com força a girar
E nós suspensos do número
Que em sorte nos ia calhar…

Sabores da minha infância
E sons que não quero esquecer
Também nessas brincadeiras
Fui aprendendo a crescer.

(Hino oficial da Figueira da Foz no site do Município: http://www.figueiradigital.com/cmff/?nodeid=1&subnodeid=11 )

17/05/07

Lisboa Menina e Moça

No Castelo ponho um cotovelo
Em Alfama descanso o olhar
E assim desfaço o novelo
De azul e mar.

À Ribeira encosto a cabeça
Almofada na cama do Tejo
Com lençóis bordados à pressa
Na cambraia de um beijo.

Lisboa menina e moça, menina
Da luz que meus olhos vêem, tão pura
Teus seios são as colinas, varina
Pregão que me traz à porta, ternura.
Cidade a ponto-luz bordada
Toalha à beira-mar estendida
Lisboa menina e moça, amada
Cidade mulher da minha vida.

No Terreiro eu passo por ti
Mas da Graça eu vejo-te nua
Quando um pombo te olha sorri
És mulher da rua.

E no bairro mais alto do sonho
Ponho o fado que soube inventar
Aguardente de vida e medronho
Que me faz cantar.

aparte 12

Já se disse que Lisboa é branca
Não, não é
Lisboa é azul
Azul da cor do Tejo

Trinta Dinheiros

No bengaleiro do mercado público
penduraram o coração.
Vestem o fato dos domingos fáceis.
Não têm rosto
têm sorrisos muitos sorrisos
aprendidos no espelho da própria podridão.
Têm palavras como sanguessugas.
Curvam-se muito.
As mãos parecem prostitutas.
Alma não têm. Penduraram a alma.
Por fora parecem homens.
Custam apenas trinta dinheiros.

Apresentação

Cantar não é talvez suficiente.
Não porque não acendam de repente as noites
tuas palavras irmãs do fogo
mas só porque palavras são
apenas chama e vento.
E contudo canção
só cantando por vezes se resiste
só cantando se pode incomodar
quem à vileza do silêncio nos obriga.

Eu venho incomodar.
Trago palavras como bofetadas
e é inútil mandarem-me calar
porque a minha canção não fica no papel.
Eu venho tocar os sinos.
Planto espadas
e transformo destinos.
Os homens ouvem-me cantar
e a pele
dos homens fica arrepiada.
E depois é madrugada
dentro dos homens onde ponho
uma espingarda e um sonho.

E é inútil mandarem-me calar.
De certo modo sou um guerrilheiro
que traz a tiracolo
uma espingarda carregada de poemas
ou se preferem sou um marinheiro
que traz o mar ao colo
e meteu um navio pela terra dentro
e pendurou depois no vento
uma canção.

Já disse: planto espadas
e transformo destinos.
E para isso basta-me tocar os sinos
que cada homem tem no coração.

16/05/07

aparte 11

São de liberdade
As mãos
quando o poema escrevem
são crueldade
as mãos
se com pedras ferem
são de mel
As mãos
Quando carícias fazem
são como fel
as mãos
quando uma vida desfazem

São conchas
quando protegem
são seiva
se nos aquecem
são pétalas
se nos afagam
são rios
se em nós passeiam
são beijos
se incendeiam
são barcos
se em nós navegam
são margens
se a nós se estendem

São de liberdade
As mãos
quando o poema escrevem

aparte 10

É de letras que me visto
É de letras que me dispo
É de letras o sofrimento
É de letras cada momento
É de letras cada beijo
É de letras que me faço desejo
É de letras que desperto
É de letras o pensamento
É de letras que me faço completo

No Sonho

Sempre no sonho me sinto
Sempre no sonho me olho
Olho-me com ideias que pinto
Durmo com cores que escolho

Sempre no sonho pinto
Sempre no sonho olho
Olho com palavras que sinto
Escrevo as imagens que escolho

E pinto e escrevo e olho
E leio no sonho
As linhas que aqui ponho
Os sonhos que desfolho

Em Abril

Em Abril
Fiz-me mil
Mil palavras gritadas
Mil imagens passadas
Numa fantasia febril

Em Abril
Foram mil
Os contos que contei
Os dias que passei
Num sabor juvenil

Em Abril ri
Em Abril me despi
Liberdade, diziam
Por ser verdade
Em Abril vivi!

Em Abril corri
Por tantas ruas
Com ideias tuas
Acordei e dormi
Em muitas luas

Em Abril acreditei
Em Abril acredito
Mesmo quando hesito
E me arrepio
Num Abril vazio...!

aparte 9

Quando me olhas
e os teus olhos brilham
vejo os meus olhos
no teu olhar
(e mesmo tão longe
sei o teu corpo
sei de cor o teu cheiro)
e nesse brilho
está tudo o que sinto
e tenho para te dar
(começo
por um imenso beijo)

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Com a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Só olho para o céu

Só olho para o céu
nas noites de lua despida
para atar os olhos nas estrelas
e ver melhor de lá a Terra e a vida.

A Terra dos braços dos teus rios.
A Terra dos olhos dos teus lagos.
A Terra do corpo do teu mar.

A Terra em que apetece ser crepúsculo
para adormecer e sonhar.

sem título

Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a Razão, mesmo vencida,
não deixa de ser Razão?

Livre

Não há machado que corte
a raíz ao pensamento
Não há morte para o vento
Não há morte

Se ao morrer o coração
Morresse a luz que lhe é querida
Sem razão seria a vida
Sem razão

Nada apaga a luz que vive
Num amor num pensamento
Porque é livre como o vento
Porque é livre

15/05/07

aparte 8

Há dias em que é fácil
ver uma rosa sem espinho

Há dias em que é fácil
percorrer o caminho

tira os espinhos que puderes
e deixa-me o perfume da rosa...

é uma ilusão?!
Que importa, se assim for,
se cada sonho vivido
traz consigo uma nova flor…

“What a Wonderful World”

I see trees of green, red roses too
I see them bloom for me and you
And I think to myself what a wonderful world.

I see skies of blue and clouds of white
The bright blessed day, the dark sacred night
And I think to myself what a wonderful world.

The colors of the rainbow so pretty in the sky
Are also on the faces of people going by
I see friends shaking hands saying how do you do
They're really saying I love you.

I hear babies crying, I watch them grow
They'll learn much more than I'll never know
And I think to myself what a wonderful world
Yes I think to myself what a wonderful world.

14/05/07

POETA

Obreiro da vida,
operário do sonho,
militante do amor.

sem título

Um olhar, vale por todas as palavras que se possam dizer e não dizer.
E tínhamos nós, tantas ostras na garganta!

Regresso

Com o vento leve e solto quero voar
E feliz, vencer toda a distância
Que vai deste momento à minha infância,
E enfim desta saudade repousar.

Embalado no cante dos ganhões
Irei, como cansado peregrino,
Cumprir no Alentejo meu destino,
Terra raíz, bordada de emoções.

Vou, do regresso, fazer uma aventura
E esparaiar meus olhos p'la lonjura
Dos espaços sem limite onde vivi.

E o sonho alentejano que perdura,
Matizado em sombras de ternura,
Dirá que meu destino acaba ali!

Sonho Barragem

Alentejo que espreguiças na lonjura
Esse tédio dos teus dias sempre iguais,
Vives cantando oceanos de ternura
No verde-mar ondulante dos trigais.

Teus barros soltos gretados p'lo suão
São bocas a suplicar desesperadas,
Gitos inúteis que vão soltando em vão,
Mortas de sede, penando revoltadas.

Alentejo que até vais, por ironia,
Alternando num perpétuo desalento
Sonhos fartura vividos cada dia,
Com os prantos de securo e sofrimento.

Povoaram-te os teus sonhos de barragens,
Equívocos que já somam muitos anos,
Secam-te os olhos nas áridas paisagens,
Bebes promessas e choras desenganos.

Planície, que há muito esperas humilhada,
Ribeiras de água a cantar, dias a fio,
Ainda vais ter um dia uma alvorada
Onde o regato se muda em farto rio.

13/05/07

Canção

PUS O MEU sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

aparte 7

Teu corpo
mar
penetrante
mar
amar
em mim
delirante
meu corpo
areia
vencido
grão a grão
se deixa levar
perdido
em emoção
teu corpo
espuma
penetra
areia
perfuma
meu corpo
amanhece
tua vida
em mim
acontece

aparte 6

Arrumo papéis
como se dessa forma
arrumasse a vida

Arrumo papéis
como se dessa forma
o tempo voasse

Arrumo papéis
como se dessa forma
a tristeza acabasse

Arrumo papéis

o tempo passa
a tristeza permanece
e a vida não acontece

sem título

(…) Mais do que sono, eu preciso é de ternura sobre estes ossos. (…)

aparte 5

Não sabes
como me sinto

em cada palavra
em cada gesto
quando me tocas
me beijas, me exploras

Não sabes
como me sinto

quando te toco,
te beijo, te percorro

Não sabes
como me sinto

quando a ti me abandono

Não sabes
como sinto…

Tempo de Poesia

Todo o tempo é de poesia

Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.

Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.

Todo o tempo é de poesia.

Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas que a amar se consagram.

Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.

Todo o tempo é de poesia

Desde a arrumação do caos
à confusão da harmonia

Poeta o que é?

Poeta o que é?
Um homem que leva
o facho da treva
no fundo da mina
- mas apenas vê
o que não ilumina.

Poema

Para além do "ser ou não ser" dos
/ problemas ocos,
O que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.

Retrato

Meu corpo é água.
Onda que vai e que vem,
abraça, foge, não pára...

No fundo, mágoa.

Meus olhos, água.
Fundura do mar salgado,
quem sabe onde tem seu fim?

No fundo, mágoa.

Minh'alma é água,
Que canta, que chora e fala:
doce cantiga das fontes,
brando choro das ribeiras,
marulho eterno das vagas...

No fundo, mágoa.

12/05/07

O Sorriso

Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir (verbo intransitivo) é rir sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos. Como se vê, está tudo errado. Começa logo por chamar intransitivo ao verbo, o que, tal como aprendemos na escola, exprime uma acção que, praticada pelo sujeito, se aplica a ele próprio e não passa para outro objecto ou outrem, e é, portanto, intransmissível… E quanto a dar por suficiente a contracção muscular, temos conversado. (…)
Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente o sentido das palavras e transformasse em fio de prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
Não há dois sorrisos iguais. (…) …temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (porque não?) o de quem morre. (…) Mas nenhum deles é o Sorriso.
O Sorriso (este, com maiúscula) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada a ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes, hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do Sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.
Mas eu falava de gente, de nós, que fazemos a aprendizagem do sorriso e dos sorrisos ao longo da vida própria e das alheias. Nós que já corremos a gama toda dos sorrisos circunstanciais e a encaixámos numa só definição. E que, como é costume nestes casos, fizemos dessa definição a chave que não abre a porta que nos tapa o caminho. Pois o Sorriso está por trás dessa porta, como um tesouro de que só conhecemos breves e agudas cintilações (…)
A tudo isto é que eu chamo sabedoria. Oponho à ironia o sorriso, este que é compreensão e serenidade, única arma contra o absurdo que vive paredes-meias connosco, couraça contra as agressões – estrada real que se quer desimpedida de miragens e alienações. (…)
Dir-me-ão que não cabe tanto no sorriso. Eu digo que cabe. Soube-o a noite passada, quando foi ele a única resposta para a insónia e para os monstros do pesadelo nascido no sono onde o corpo acabou por deslizar, cansado e aflito. Sorrir assim, mesmo sem olhos que nos recebam, é o verbo mais transitivo de todas as gramáticas. Pessoal e rigorosamente transmissível. O ponto está em haver quem o conjugue.

As Palavras

As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras sãodadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: Vêm nos livros, nos jornais, nos "slogans" publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. (...) Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. (...)
Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. (...) A palavra não mostra. A palavra disfarça.(...)
Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.

Poesia

(...) Não venham também perguntar-me com que sentido me é dado apreender a Poesia - só lhes digo que não é com nenhum dos cinco (...)

Uma palavra dorme

Uma palavra dorme em seu casulo
de saliva lavrada
está viva porém muda
e anulada

Uma palavra hiberna em seu conteúdo
Seu buraco de som seu palácio de letras:
Bela Adormecida à espera que tudo
volte a acordar nos poetas.

Diremos outras vezes
que uma esbelta palavra se levanta
e canta
o perfeito silêncio que a inventa.

Outras vezes diremos
que uma palavra tenta
ser apenas
o acto
que a desvenda.

aparte 4

Quero…
...olhar-te
e que os meus olhos
te digam...
beija-me!
Quero…
…o teu corpo
E ele me diga
Quero-te!
E nesse ir e vir de dois corpos unidos
sedentos
suados
sintamo-nos vivos
para nos podermos sentir
finalmente
cansados..........

POR ESTE RIO ACIMA

Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas
leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima


Por este rio acima
Os barcos vão pintados
De muitas pinturas
Descrevem varandas
E os cabelos de Inês
Desenham memórias
Ao longo da água
Bosques enfeitiçados
Soutos laranjeiras
Campinas de trigo
Amores repartidos
Afagam as dores
Quando são sentidos
Monstros adormecidos
Na esfera do fogo
Como nasce a paz
Por este rio acima

Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei
Eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
meu bem

Por este rio acima
isto que é de uns
Também é de outros
Não é mais nem menos
Nascidos foram todos
Do suor da fêmea
Do calor do macho
Aquilo que uns tratam
Não hão-de tratar
Outros de outra coisa
Pois o que vende o fresco
Não vende o salgado
Nem também o seco
Na terra em harmonia
Perfeita e suave
das margens do rio
Por este rio acima

Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei
Eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
meu bem

Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas
leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima

aparte 3

Não sei se estás
ou
se, estando, não estás
não sei se devo estar
ou
se, estando, não devo
não sei se escreva
ou
se, escrevendo, nada diga
não sei se amo
ou
se, amando, me cale
só sei que espero
numa espera sofrida

11/05/07

De uma Poesia...

De uma poesia esperam
tanta cousa!
E logo desesperam
se não ousa.

Mas a poesia nada tem com isso.
Ela não diz nem faz,
nem está sequer ao teu ao meu serviço.
Serão visões de paz,
aquilo que ela traz:
mas quanta guerra para falar nisso!

Uma só coisa ela será, se for
(e espera ou desespera
conforme o meu, o teu, o nosso amor):
Inverno ou Primavera,
e sempre uma outra dor

aparte 2

Por aqui
num tempo sem fim
num espaço
qualquer espaço
penso em ti…
vejo-te
sem te olhar
sinto-te
sem tocar
e espero…
espero por um momento
em que ver-te
seja olhar-te
em que sentir
seja também tocar-te
espero pelo momento
em que a distância se anule
espero-
-te

10/05/07

Ausência

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua

F

F
Vertical
um corte:
um sinal
sul-norte.

Dois traços
tão certos:
dois baraços abertos.

Optar
por um lado:
estar
acordado

Fábula da Fábula

Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora,
Que, em verso e em prosa,
Toda a gente
Inteligente
Prudente
E sabedora
Repetia aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base de uns insectos,
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.
E realmente...
Simplesmente
Enquanto a fábula contava,
Uma demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.

A Cigarra e a Formiga


aparte

Guardarei…

...o humor que me faz rir
...a ternura que me faz sorrir
...os beijos que me aquecem
...os sussurros que me enlouquecem
...os dedos que me acariciam...
a fonte que me saceia...
o sexo que me atravessa...
o orgasmo que me faz explodir
................................................................
os beijos que me dizem
...até amanhã!

E adormeço.

Canção de madrugar

De linho te vesti
de nardos te enfeitei
amor que nunca vi
mas sei.

Sei dos teus olhos acesos na noite
- sinais de bem despertar -
sei dos teus braços abertos a todos
que morrem devagar.

Sei meu amor inventado que um dia
teu corpo pode acender
uma fogueira de sol e de fúria
que nos verá nascer.

Irei beber em ti
o vinho que pisei
o fel do que sofri
e dei.

Dei do meu corpo um chicote de força.
Rasei meus olhos com água.
Dei do meu sangue uma espada de raiva
e uma lança de mágoa.

Dei do meu sonho uma corda de insónias
cravei meus braços com setas
descobri rosas alarguei cidades
e construí poetas.

E nunca te encontrei
na estrada do que fiz
amor que nunca logrei
mas quis.

Sei meu amor inventado que um dia
teu corpo há-de acender
uma fogueira de sol e de fúria
que nos verá nascer.

Então:
nem choros nem medos nem uivos
nem gritos nem pedras nem facas
nem fomes nem secas nem feras
nem ferros nem farpas nem farsas
nem forcas nem cardos nem dardos
nem guerras

José Carlos Ary dos Santos

Rosas Vermelhas

Nasci em Maio, o mês das rosas, diz-se. Talvez por isso eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira para mim mesmo.
E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.
Nesse tempo o Sol nascia exactamente no meu quarto. Eu abria a janela. Em frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos. Quando chegava o mês de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, carroças e ciganos. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos.
E tudo estava certo, nesse tempo, ou, pelo menos, nada tinha o sabor do irremediável. Nem mesmo a morte da minha tia. Por muito tempo ela ficou nos retratos e no jardim, bordando à sombra das magnólias, andando pela casa nos pequenos ruídos do dia-a-dia, até que, pouco a pouco, se foi confundindo com as muitas ausências que vinham sentar-se na cadeira, onde, dantes, minha tia se sentava.
E eu dormia poisado sobre a eternidade, como se tudo estivesse certo para sempre, eu dormia com muitos olhos, muitos gestos vigilantes sobre o meu sono. Por vezes tinha pesadelos, acordava, inquieto, a meio da noite, qualquer coisa parecia querer despedaçar-se e então exclamava:
- Mãe!
e logo essa voz, tão calma, entrava dentro de mim, mandava embora os fantasmas, e era de novo o meu quarto, a doce quentura da minha casa no cimo da ternura.
Não havia polícia nesse tempo. Ninguém roubaria a tranquilidade do meu sono, ninguém viria a meio da noite para me levar, porque bastava eu chamar:
- Mãe!
e logo uma voz, tão calma, mandava embora os fantasmas. E era a paz, nesse tempo, em que todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, o dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã, a minha mãe abria a porta do meu quarto e colocava, religiosamente, um ramo de rosas vermelhas sobre a minha vida, nesse tempo, em que dormir, acordar, nascer, crescer, viver, morrer, eram um rito no rito das estações.
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um grito abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida, e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me roesse o estômago. E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar, repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa? Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida?
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Dormia – como direi? – acordado sobre cada minuto. Tinha aprendido o irremediável. Alguma coisa, dentro de mim, se despedaçara para sempre (para sempre? Que quer dizer para sempre?). Era inútil chamar. Tinha aprendido, fisicamente, a solidão. Embora na cela do lado, alguém, batendo com os dedos na parede, me dissesse, como se fosse a voz longínqua do meu povo:
- Coragem!,
eu estava, pela primeira vez, fisicamente só, dentro do meu sono povoado por esse grito que estalava por vezes as traves da minha cabeça (onde essa voz que mandava embora os fantasmas?).
E era terrível essa manhã sem manhã, essa realidade branca e gelada, toda feita de paredes, grades, perguntas, gritos. Mesmo que na cela do lado, alguém, batendo com os dedos na parede, me dissesse:
- Bom dia!,
era terrível acordar nessa estreita paisagem com sete passos de comprimento por sete de largura, tão hostil, tão dolorosa como as regiões dos pesadelos. Porque acordar era ter a certeza de que a realidade não desmentiria o pesadelo.
Mesmo que os meus dedos batendo na parede transmitissem notícias dum homem que podia responder:
- Bom dia,
de cabeça erguida, era terrível acordar no mês de Maio, com a certeza de que no dia 12 a minha mãe não entraria pelo meu quarto, deixando-me na fronte um beijo, e rosas vermelhas sobre os meus vinte e sete anos.
Talvez seja preciso renunciar à felicidade para conquistar a felicidade. Eu estava na cadeia em Maio de 1963. Tinha aprendido a solidão. Tinha aprendido que se pode gritar com todas as nossas forças quando se acorda a meio da noite com um grito na cabeça e um rato (talvez o medo?), roendo-nos o estômago, que ninguém, ninguém virá repor a paz dentro de nós. E, então, é a altura de saber se as traves mestras dum homem resistirão. Pois só a tua voz, amigo, responderá ao teu apelo torturado na noite. E, nessa hora (a mais solitária das horas), se conseguires cerrar os dentes, dar um murro na parede, acender um cigarro, se conseguires vencer esse encontro com a solidão no mais fundo de ti próprio, com que alegria, com que estranha alegria, na manhã seguinte, tu responderás:
- Bom dia!,
mesmo que seja terrível acordar no mês de Maio, nessa estreita paisagem, gelada e branca, com sete passos de comprimento por sete de largura.
É certo que se podem escolher outros caminhos. Mas poderia eu ter escolhido outro caminho? Acaso poderia dormir descansado, onde quer que estivesse, sabendo que algures, na noite, há homens que batem, há homens que gritam?
Os fantasmas tinham entrado no meu sono, invadiram a minha casa no cimo da ternura; os fantasmas eram donos do País. E se eles viessem de repente, a meio da noite, e eu chamasse:
- Mãe!
a voz (tão calma) de minha mãe já nada poderia contra eles. Era um trabalho para mim, uma tarefa para todos aqueles que não podem suportar a sujeição. Eu nunca pude suportar a sujeição. Acaso poderia ter escolhido outro caminho?
Por isso, em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto.
No dia 12 não acordei com o beijo de minha mãe.
Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas talvez – quem sabe? -, às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha, duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela.
in, "Praça da Canção", Manuel Alegre, Editora Ulisseia, Lisboa, 2ª Ed.